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Estradas Cruzadas #1- La Pampa a El Calafate

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Artigo: Rafael Pinheiro para Portal Cicloventureiro

A escolha!

Mesmo sabendo que o clima poderia ter sido um problema, minha teimosia se uniu à vontade de me provar e cortei a província de Buenos Aires rumo Cordilheira dos Andes para então seguir ao sul até chegar à Ushuaia, a cidade mais austral do mundo.

A Patagônia por si só já é uma região fantástica para quem vai simplesmente passar uma semana de férias, cruzar de bicicleta toda sua extensão me deixava com os olhos marejados só por imaginar.

Teoricamente, o lado argentino da Patagônia inicia na província de Neuquen, e se estende até a Terra do Fogo, porém, existe hoje uma definição política, adicionando La Pampa, dado seus aspectos de clima, e grandes distâncias sem nenhum “ponto de apoio”.

Cheguei pedalando pela Ruta 18, a mudança de paisagem se tornava cada vez mais inegável. As pequenas e isoladas cidades da Pampa seca argentina começam a dar lugar às plantações aparentemente sem fim, anunciando grandes trechos totalmente autossuficientes, com raros contatos humanos, noites na barraca próxima a postos de gasolina, e motoristas oferecendo carona todo tempo, incrédulos ao saberem do tamanho da viagem proposta. Assim seguiram-se alguns dias. Digo alguns, pois honestamente não me recordo quanto tempo pedalei, essa rota pra mim foi praticamente uma purificação espiritual, na qual cheguei a pedalar 145km no último dia. Entrando agora na província de Neuquen e chegando a sua capital tive uma grande surpresa quando descobri que existe influência bastante forte de cultura brasileira, inclusive, Alejandro, que me recebeu pelo Couchsurfing, estava fazendo aulas de português, e tocava pandeiro em uma escola de samba da cidade. Minha reação ao descobrir isso, foi obviamente dizer: “Cara, você é mais brasileiro eu eu hahaha”.

Fiquei alguns dias na casa, e conheci outro brasileiro viajando de bike, Brian, que também ia para o sul, mas com um estilo de viagem diferente do meu. Segui a uma anfitriã do Wamshowers a Senillosa, e depois cheguei a Zapala, uma cidade pequena, de onde já se podia ver os picos nevados da Cordilheira dos Andes, e entrar na famosa Ruta 40. Porém, como meus dias de permanência na Argentina precisavam ser renovados, decidir seguir à Villa Pehuenia e entrar momentaneamente no Chile e regressar. O caminho até lá foi complicado, pois eu ainda não estava acostumado ao temido rípio. Na minha cabeça seria uma estrada de cascalho como muitas do Brasil, mas a abrasividade do mineral que formava as pedras era absurdo.

Passei por descidas super íngremes e sem proteção, que fariam a Serra do Rio do Rastro parecer um mero treinamento, e ao chegar percebo o estrago que fez no meu aro dianteiro, que possivelmente necessitaria ser trocado. O lugar é fascinante, é como uma versão miniatura de Bariloche, ainda não tão explorado pelo turismo. Lá encontrei outra vez Brian, junto com um casal de cicloviajantes, Sebastian, um argentino que viajava acompanhado de sua cachorrinha Ambar, e Elif, uma cicloviajante turca, na estrada há sete anos. Compartilhamos momentos legais, conhecimento, risadas e pizza. Saí no dia seguinte mais tarde do que o planejado, já que o pneu do bike trailer é de uma qualidade bem questionável e fura o tempo todo.

No caminho resolvi passar comprar suprimentos. Ao sair do mercado notei pequenos flocos de neve caindo, que apesar de se derreterem antes de tocar o solo, anunciavam que eu estava deixando o calor para trás, e que era bom eu ter acertado na escolha dos equipamentos para o frio, já que o inverno patagônico nesse momento, era a barreira mais complicada que eu iria enfrentar.

 

Com uma previsão de relevo favorável, decidi aproveitar o conforto da barraca algumas horas a mais em Aluminé, e sair ao meio dia para pedalar os 100km até Junin de los Andes, o que acabou sendo um erro. Não sabia a situação da pista, o rípio estava muito pior do que o esperado, com pontos de obras, o que fez com que eu chegasse perto das dez da noite. Somado a isso, tive dificuldades em contatar o casal que me receberia na cidade, apesar de ainda estar em abril o frio andino já estava mostrando sua cara. Por sorte, o Warmshowers é uma ferramenta incrivelmente versátil, acabei encontrando um outro lugar onde ficar, conversei com o anfitrião pelo Whatsapp, que prontamente me enviou sua localização. Descansei dois dias, e passei tomar mate com o casal que seriam originalmente meus anfitriões, mas que tiveram um problema com celular, e não conseguiram me contactar a tempo. Eles eram de uma simpatia incrível, conheceram um ao outro em uma viagem de bike pela europa, e foram morar juntos na Patagônia.

Saindo de Junin, entrei de verdade na Ruta 40, acompanhado pela cordilheira ao lado direito, já percebendo que a população local está “acostumada” com cicloviajantes, e já não me olhava mais com cara de “tu veio do Brasil pedalando? ”.

Em San Martin de Los Andes fui recebido em um hostel, que recebia hóspedes por couchsurfing, ou seja, sem custo. O dono do local fazia isso antes da alta temporada iniciar, como maneira de ajudar os viajantes, como fizeram com ele em sua juventude. A cidade é muito bonita. Super explorada por turismo, com uma boa infraestrutura, e cheio de gente de diversas partes do mundo. Não sem motivo, claro, é a porta de entrada para a Rota dos Sete Lagos, tendo o primeiro, o Lago Lácar.

O presente inesperado!

Nesse trajeto fui presenteado com algumas das paisagens mais bonitas da vida. Decidi não buscar hosts e me manter fazendo camping selvagem durante todo o trajeto, para aproveita ao máximo da experiência.

Me deixei surpreender e não busquei muitas informações, o que me proporcionou acampamentos incríveis, fazendo valer o esforço em alguns pontos de relevo bem inclinado, e também a quantidade de chuva que peguei em Villa La Angostura. Recomendo muito, que façam esse trajeto com calma, aproveitando a natureza na região, e se possível fazer trekking por lá, que também é bem legal.

A paisagem todos os dias foi impressionante, mas encontrar aquela quantidade de cicloviajantes em um único tramo da viagem me deixou bastante animado, acho que foram mais de cinquenta, incluindo uma família suiça, viajando em duas bikes tandem, pai e mãe com um filho cada, o que me deixou bastante animado, mas também pensativo, já que de todos esses encontros, pouquíssimos foram com sul-americanos. Creio que seria fazer um um artigo só sobre os motivos de não aproveitarmos nosso próprio continente como deveríamos.

Seguindo nessa rotina de camping selvagem, pedalar durante o dia e se proteger do frio à noite, foi quando comecei a desenvolver a ligação que hoje tenho com a patagônia, e motivo pelo qual tenho vontade de ir morar em alguma cidadezinha dessas um dia. Mas nesse momento eu estava precisando realmente chegar em alguma cidade, tanto para recuperar de verdade minhas forças, e recuperar um pouco a “civilização” em mim, deixada de lado depois de tanto tempo só acampando. Chegando em Bariloche, fui recebido pelo Miguel, anfitrião local, fabricante de bicicletas para viagem, cicloviajante e dono de um verdadeiro museu de magrelas. Imagine a alegria de ter ficado alguns dias lá né? Conheci também lá um casal de austríacos viajando em uma tandem recumbante, que à primeira vista parecia meio desconfortável, mas eles juravam que era super tranquilo de pedalar.

Algo que me deixou assustado lá foram os preços, extrapolados pelo excesso de turismo da região, e também por ser a única cidade relativamente “grande”. Por sorte acabei encontrando uma feira de coisas usadas, onde comprei uma luva que salvaria meus dedos do vento frio no fim de cada dia.

No último dia na cidade encontrei – outra vez – O Brian, que apesar de estar bem na minha frente, por ter passado por um dia de frio e chuva, acabou desistindo de seguir ao sul do continente, e mudando sua rota para percorrer o norte argentino, e deixar Ushuaia para o verão. Conversamos bastante, e ele ainda me passou um contato de onde ficar em El Bolson.

Uma outra vez, por problemas na câmara da rota do bike trailer acabei chegando tarde, Mas com a estrada pavimentada e praticamente toda em declive, um pouco mais cedo à casa de Mari e seu papagaio Loro. Criamos uma amizade muito legal, especialmente pelo fato de ela também ser engenheira, cicloturista e acostumada a receber hóspedes do mundo todo. Inclusive, muito metódica, com tudo documentado, nome, local de onde veio, contato, e marcado em um mapa mundi.

Descansado segui minha viagem, avisado pela população local para ter precaução em alguns trechos, já que a região foi palco de alguns confrontos entre as comunidades originárias e a gendarmeria. Acabei acampando em um destacamento da polícia vial – lugares que eu, particularmente agradeço sempre pela hospitalidade – abrigado do vento.

Nessa região as paisagens mudam drasticamente. O verde da zona cordilheiriça dá lugar ao semiárido argentino, onde eu passei um dos episódios mais amedrontadores em relação ao frio em toda viagem.

Na cidade de Tecka, depois de alguns dias sem internet decidi armar a barraca perto do posto de gasolina da cidade, mas que o faria mais tarde pois precisava entrar em contato com a família.

O Susto!

Próximo da meia-noite, já cansado, entrei no saco de dormir e simplesmente apaguei, escapando do meu ritual de trocar a meia molhada de suor, por uma meia térmica seca. Na manhã seguinte, ainda com a meia molhada, estava desarmando a barraca e arrumando as coisas na bicicleta quando percebi que não estava sentindo mais os pés. Comecei a cutuca-los e percebi que estavam congelando. Nesse momento corri para dentro do posto de gasolina, me aproximei da calefação e fiquei lá, tomando um café até que os pés voltassem ao normal, pusesse meias secas e só assim seguir para a estrada.

A viagem seguiu um tanto monótona, alternando noites na barraca e paradas em pequenas cidades para comprar comida, até que no meio do semiárido acabei estragando a mangueira do fogareiro, impedindo de cozinhar. Por sorte encontrei um grupo de caminhoneiros chilenos, que me convidaram para almoçar com eles, e eu aceitei, é claro, sem pensar duas vezes, o que me poupou de comer só bolacha por alguns dias

Rio Mayo foi uma grande surpresa, não só pelo fato da cidade existir isolada de tudo, graças à uma mina que existe próximo da qual todas as pessoas de lá dependem direta, ou indiretamente, mas o fato de meu host não estar na cidade, ter me passado contato do seu pai, que, por mais maluco que possa parecer, tinha uma mangueira de fogareiro da mesma marca do meu, bem como as ferramentas para fazer a troca. Por mais improvável que possa parecer, saí de lá apto a fazer minha própria comida outra vez.

Vento a Favor?

Saí da cidade não só abaixo de chuva, mas com um vento bizarro me acompanhando a favor o que acelerou minha viagem e permitiu que eu chegasse a Perito Moreno antes do esperado. Lá percebi que um dos meus raios estavam quebrados, e como na cidade não há bicicletaria, me recomendaram ir a um ferro velho, onde encontrei uma roda velha, saquei e substitui o raio sem maiores problemas (uma vantagem técnica das aro 26).

Daí em diante tive uma das experiências de isolamento mais pesadas da vida. Como não encontrei alguém para receber-me em El Chalten, resolvi ir direto para El Calafate. Eu sabia que haviam povoados no caminho, mas por via das dúvidas comprei comida para mais dias, o que se provou a melhor decisão possível. Foram 652 km sem encontrar humanos. Inclusive, nem nos povoados. Foi uma semana acampando, passando por esses lugares “fantasmas”, enfrentando ventos de mais de 80km/h.

Continua …

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Quer ouvir um pouco mais sobre o Estradas Cruzadas ouça p Podcast do Extremos aqui no portal Cicloaventureiro.

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